O limiar da dor

Foi na Rua Vasco de Gama que nasci. Em casa, que era como se nascia. Hoje encontrei-me com esta notícia aqui, de Março deste ano de 2011: «no município sede, a Rua Vasco da Gama, a primeira desde que esta vila ascendeu a categoria de cidade há 79 anos, cortando a norte o bairro do Ritondo, há mais de 3 anos que está intransitável» (...) «Há tempos atrás foi a melhor rua de Malanje, mas não estão a ver nessa situação da rua, até o nome desapareceu. Isso já está há muito tempo, mais ou menos, praticamente 3 anos assim pessimamente».
Nunca mais voltei a Angola. Não mais voltarei a Angola. Tenho os meus avós maternos ali sepultados. Dizem que até a laje de mármore que tinha o nome deles gravado nas suas campas foi roubada. Prefiro guardar as recordações e dolorosas mas não ter de enfrentar mais dor. Há um limite para o que conseguimos sofrer.
Perguntei há dias como estava essa que é a cidade onde me deram o ser. «Bem», responderam-me, «está bem», que é a forma delicada de nos porem à porta, a nós e às nossas indesejadas preocupações.
Nasci ali. Como já disse, ao cimo da rua era a Quitanda, o mercado local, ao fundo, ao fundo, a caminho do bairro do Ritondo, a linha do caminho de ferro. A meio ficava a Casa Santos Pinto. Do lado de cá da rua era uma corrente de casas que a minha mãe ia comprando, velhas e a cair e arrendava, depois de as mandar reparar. Fazia-o com o dinheiro que amealhavam, o meu pai com o seu escritório de solicitador, ela trabalhando nele. Lembro-me disso com tanta nitidez como se tivesse sucedido agora neste local onde escrevo, o meu pai a entregar-lhe o que iam ganhando e a pedir-lhe, «Ernestina», alguns angolares, quando precisava. 
Ficou-me aí, nesse modo simples e doméstico de ser, a ânsia por uma família. Éramos sozinhos e talvez fosse essa a nossa individualidade. Levei uma vida inteira perseguindo esse anseio. Hoje a minha rua já nem nome tem. E eu vivo numa casa e a devê-la ao banco.

[a foto é cortesia deste blog aqui]

O aprumado "lusito"

Era obrigatório e era aos sábados. O instrutor era um oficial branco do Quartel da Companhia Indígena, carregado de ideias patrióticas. Eu era dos mais miúdos de todos e sobretudo o mais pequeno. 
Nem sei o bem o que fazíamos naquelas tardes de chatice, pois poucas recordações me ficaram. Lembro sim da farda, camisa verde com o emblema das quinas, o bivaque dentro do qual sobejava na altura uma farta cabeleira, calção de caqui, apertado com um cinto, que quase dava duas voltas ao meu tronco magrinho, com um "S" à frente, que tanto me foi explicado ser de "Salazar", como de "Saber Servir". Mais tarde houve quem dissesse ser a ideia aproximar a coisa às "SS", mas duvido que, franzino e de farta melena a saltar do bivaque, as meias a caírem-me pelas pernas abaixo, apesar de um elástico que lhes dava uma volta ao cano e me deixa uma verdugão nas pernas, tipos da minha laia pudessem, por sonhos que fossem, ser equiparados ao pesadelo dessa tropa de elite nazi, que davam a vida pelo Reich dos Mil Anos e pelo seu Führer, matando e exterminando em nome da mística da pureza racial e do espaço vital, com maior apetite pelos judeus que não tinham certificado de arianeidade.
Fui encontrar esta foto na caixa de sapatos das recordações. Eis-me, fardado da Mocidade Portuguesa. A mesma em cuja criação esteve o general Humberto Delgado.
Naquele dia estávamos no campo de aviação de Malanje, formados em castelo, eu eterno "lusito", à espera do general Kaúzla de Arriaga, o mais à direita dos generais portugueses, que visitava o local. E que depois em Moçambique teria como ajudante de campo o senhor major Tomé. Sim, o mesmo que seria da UDP.
Um dia, na instrução, respondendo à chamada, sei lá porque maluqueira, respondi "presunto", em vez de "presente". Levei uma chapada do alferes instrutor. A partir daí é um buraco negro na memória.
Quando saí para o colégio dos padres, para iniciar o liceu, não havia lá a "bufa". E os meus sábados foram, enfim, libertos da Pátria, por obra de Deus, para me dedicar à Família. Só por isso aqueles padres entraram-me no coração.

O mancebo

Moro hoje em frente ao fatídico local. Era ali o DRM, o Distrito de Recrutamento e Mobilização, onde se ia saber do recenseamento e pedir o adiamento da incorporação e essas coisas que eram necessárias para se estar em dia com os deveres castrenses. O interlocutor que me cabia era o «sargento Batalha», o rosto visível de uma realidade cada vez mais próxima, o Exército Português.
Eu tinha sido apurado «para todo e qualquer serviço militar», e comigo aqueles a quem faltava um dedo para accionarem o gatilho, que disparassem com os dedos que sobejassem, e os que tinham pé chato mas não tinham "cunha" e tudo e as botas, que já se rapava no fundo para encontrar «carne para canhão».
A "inspecção" essa foi num quartel pelas zona de Oeiras. Não sei porque ironia, já despidos, confinaram-nos numa sala de aulas, onde carteiras escolares, de tampo inclinado, davam um ar de infantilidade ao ambiente, que a ardósia e os mapas de geografia e os atlas do corpo humano, enforcados na parede, completavam. 
Imagina-se que meia hora depois, aquela horda de homens nus, estava tão infantil quanto o local  circundante. Entre as brejeirices que não tardaram a fazer-se ouvir e os efeitos gerados por um que se lembrara de levar uma revista adequada a fazer entrar em acção a mecânica dos fluídos masculinos e suas consequências elevatórias, houve de tudo.
Na hora da chamada, um a um, já o respeito mudo deslaçara, cumpriu-se, em fila indiana, o bando em pelota, o ritual do acto, com a sua liturgia e eis a minha vez de ir à «craveira», um metro e setenta e dois, «balança», quarenta e oito quilos «há-de engordar!», tudo fechado em segundos pelo «pum pum-pum» de duas carimbadelas num impresso, e está feito que o coronel médico nem se dignava levantar os olhos, «apurado!».
Foi o e assim sucessivamente até ter aparecido o mais virilmente afectado pela provocante revista, que andara, entretanto de mão em mão, com as rotundidades femininas fotografadas em grande plano, que a coisa ia então dando para o torno «que se andam para aqui a brincar, vão ver o que é bom para a tosse, que isto não é nenhum casa de putas, ou o que é pensam?» e ninguém pensava nada. Atrapalhado, o pobre rapaz, sem saber como aquietar aquele inesperado prolongamento de si, sumiu-se entre risinhos e piadas já de caserna para os fundos do anonimato, à procura das calças e dos sapatos naquele amontoado de roupa em que no final um tinha dois sapatos do pé direito e as cuecas de outro nunca mais apareceram.
Passada a prova em que todos venciam, ao regressar a casa, nesse dia, a Amadora tinha, sem o saber, mais um mancebo, o 153053/70, soldadinho  de chumbo, que aprenderia mais tarde a «ordem unida» e com ela o «firme sentido ombro arma apresentar arma, descansar!», tudo de modo declamado, sincopadas as palavras, prolongados os seus finais, voz de comando, ao toque de requinta e ao som de tambor, «pronto, meu Capitão», «Vossa Senhoria dá licença?». «Destroçar!»
Ao olhar para a fotografia, os óculos sem aro, o ar de betinho bem compostinho, que nem sei onde o inventei, ganho a certeza que a guerra estava perdida.

Um Soldado Desconhecido


Que guerra era aquela para os meus doze anos quando ela começou? Que motivos tinha eu para a compreender, razões para justificar como é que, de repente, o ódio andava à solta pelas ruas? 
Eu, menino branco, filho de e neto de colonos, para quem África já era a sua terra, eu com dois irmãos mulatos, nascidos de meu pai, que praticamente não conheci e face a quem tenho hoje como que um pudor vergonhoso de me encontrar por não saber sequer o que lhes dizer? Eu para quem a Angola dos meninos brancos, dos "riscas-risca" e das "rebitas" e das "caçadas", não era a minha terra, nem a dos meninos negros porque sentia que não era negro sem imaginar sequer o que era ser-se europeu. Eu, para quem a Metrópole foi um sabor adquirido, mas que por decreto governamental era considerado um "branco de segunda"?
Da guerra que nos cercava, com o seu cortejo de horrores, ficou apenas o medo nocturno, o acordar a meio do sono espavorido e ir abraçar-me a uma espingarda 22 Long que o meu pai comprara, mais seiscentas balas e uma pistola, armando-se como tantos brancos se armaram, defendendo-se uns de uma matança, imaginando outros uma matança. 
O medo ao ligar para o cinema, a partir do n.º 95 - que era o do telefone da nossa casa - e pedir à dona Manuela - que era a menina da bilheteira - que chamasse os meus pais, porque já não aguentava mais estar sozinho em casa, escondido, espavorido por tudo o que via relatado nas conversas dos mais velhos, num pesadelo sonâmbulo de que me entrasse pela casa adentro, de catana em riste, de "canhangulo" apontado, seja do que fosse de primitivo mas mortífero alguém e me escolhesse a mim por acaso para sacrifício pelos seus antepassados.
E como tudo se debatia numa convulsão contraditória na minha cabeça.
Mas não era aquela a terra da convivência pacífica do meu pai e o seu escritório de solicitador, mais a Emíila, escriturária, negra, negríssima, que ainda hoje me chama «o nosso filho» quando de mim fala à minha mãe, assim ela a pudesse já ouvir. Do Norberto, mulato, rapaz das voltas, que me deixava andar de bicicleta às escondidas do meu pai? Do David, o carpinteiro que fazia todos os biscates de que uma casa precisava? Do Leonel, meu meio-irmão que andou comigo ao colo, casado com a sua Saudade?
Era, mas era a mesma Angola em que no Cinema do Senhor Pratas ainda houve um dístico que anunciava «é proibida a entrada a indígenas» e por isso o Director de Fazenda viu a sua entrada recusada por um porteiro zeloso, e, orgulhoso, se recusou agora ele a entrar, mau grado as desculpas do próprio Pratas, que «indígenas» eram os outros «os matumbos» os «não assimilados», «o senhor doutor desculpe». 
A mesma Angola onde eu ouvia os gritos lancinantes dos negros que fugiam ao "contrato" - pelo qual eram arrebanhados nas suas terras por negreiros e levados para trabalharem com prazo fixo obrigatório para longe dos seus e quantos criados domésticos tivemos desses - e em quem os "cipaios", polícias negros ao serviço submisso da nossa Administração Colonial, arreavam palmatoadas até as mãos lhes rebentarem de sangue como castigo pela ousadia da fuga.
A mesma Angola de tanta companhia majestática, da Diamang ali ao lado, e tanto branco pobre, que chegavam à busca de melhor vida, fato de cotim, mala de papelão, vindos com "carta de chamada" na terceira classe do "Niassa", do "Uíge", a mesma Angola onde o meu avô, serralheiro mecânico, dizia que para ver um branco nos 400 quilómetros em redor tinha de se olhar ao espelho e eu pensava por isso que deveríamos ser boas pessoas para todos eles quando não cortavam-nos as goelas e jogavam-nos no mato, à mercê da bicharada. 
A mesma, a mesmíssima Angola, em que o "soba" nativo castigava quem lhe roubava a mulher atando-o e à adúltera, irmãos de raça, num buraco para que fossem comidos vivos, dias a fio, por hordas de quissonde, essa formiga carnívora cuja ferroada era um ganir de dor e no fim ficavam só os ossos.
Sei que quando a minha vez chegou, já na Metrópole, já licenciado em Direito, estágio feito de advocacia, de ir para a tropa, por ter beneficiado de uma «espera» para que ganhasse tal habilitação, e me coube, não aquilo por que me esperaram, mas, mau grado os meus ridículos 48 quilos, Armas Pesadas de Infantaria  - «onde se mata sem saber quem, e se é morto sem saber por quem», no dizer alarve do nosso instrutor - e já com prometido embarque para a Guiné, decidi: «não vou».
E, no entanto, não tinha para onde ir. Não tinha partido, nem grupo, nem pai já, nem dinheiro, era um pobre diabo que tinha passado meia faculdade mal alimentado e a comer miséria disfarçada, a meias com a mãe, porque Angola nos fora madrasta e ficou lá tudo sem descolonização, antes da descolonização, dois ermos sozinhos e aos tombos da sorte. 
Não sabia, na minha cobardia de desertor, como se chegava onde quer que fosse, mas atravessaria a fronteira a pé, corajosamente, nem que fosse para a terra de sítio nenhum.
Achava que Salazar mentia quando propalava que defendíamos Angola contra os imperialismos e a História mostrou que quem estava enganado era eu. Achava que os soldados iam matar negros que já estavam mortos na sua dignidade humana por um regime que os libertou da escravatura tornando-os serviçais e, afinal, olho hoje para o regime de Luanda e a História insulta-me nas minhas certezas.
Para o Governo de Lisboa, seria negar-se a si próprio não ter defendido as colónias. Para os soldados que em nome de um dever, de uma ambição ou de uma inércia, deram a vida por essa defesa, a Pátria deve-lhes um silêncio compungido e pesaroso. Ante uma cruz funerária de um soldado morto, não há política que se discuta, ajoelhamos pelos nossos e pelos deles.
Um dia insultaram o António Lobo Antunes por escrever sobre uma guerra que não viveu. Um soldado não conta a sua história. Cada um deles, os que sobreviveram ou escaparam à linha da frente, é, mesmo sem o saber, um Soldado Desconhecido.

O medíocre medo

Um dia chegaria a guerra. Primeiro sob a forma de belgas espavoridos, que fugiam do Congo, os seus carros apinhados com tudo quanto podiam trazer, desorientados, a caminho de salvarem a pele. Não sei porque passaram por Malanje. Talvez, suponho hoje, por causa da companhia belga do algodão, a Cotonang, onde o meu avô trabalhava.
Sei que foi a primeira vez eu, um miúdo com onze anos, habituado à vivência pacífica da minha rua, que era o único mundo de todos os mundos e mais a escola, senti o que era o "poder branco" a escaqueirar-se como uma jarra de porcelana que das mãos se soltasse. E o espanto de todos pela fragilidade de um sistema que eu nunca tinha percebido que era colonial, porque na escola se estudavam os afluentes do rio Tejo, as linhas ferroviárias do Douro, e coisas como Dadrá e Ngar Aveli, o Afonso de Albuquerque, os Bijagós e o rio Rovuma que nascia no Largo do Niassa.
Mas ei-los, os que até ali dominavam e mandavam sobre o indigenato e seu trabalho, a escaparam-se como coelhos, assustadiços aos primeiros tiros.
Em casa supunha-se, porém, que aquilo não era connosco. Porque os belgas eram uns negreiros e nós tínhamos mestiçado. Porque aquela era a nossa terra, e o Congo belga tinha sido uma coutada do Rei Leopoldo.
Pela hora do jantar ouvia-se, no entanto, Rádio Brazzaville, o local do sinal marcado com um risquinho a tinta no quadrante do rádio a válvulas, em onda curta e um ambiente pesado, sombrio, cerrava a cara dos mais velhos.
Um dia fomos convocados para ir para o Campo de Aviação, um pedaço de terra batida, sem asfalto, mais um casinhoto de fazia de hangar de uma pequena avioneta ocasional. Colocados em oblíquo à pista os automóveis, os seus faróis iluminavam-na para que, naquele inquieto anoitecer, ele pudesse aterrar entre o troar medonho dos seus motores a hélice e a nuvem de pó quando as rodas tocaram o chão. Tubular, ovóide, estranho pássaro, o avião, um Nord Atlas, murmurava-se, vinha carregado de armamento para o Quartel.
Foi então o tempo da revolta da Baixa do Cassanje o morticínio a que se seguiria o morticínio. A chegada dos Caçadores Especiais. 
Ainda hoje tenho estampado no interior da alma o medo, o horrível e medíocre medo. Quando ficava sozinho em casa. Quando, caindo sobre os telhados de zinco, as mangas, tudo pareciam estrondos de explosões. Dos faróis dos jeeps à noite. Do ladrar de uma metralhadora pesada no quartel. Do que se dizia no dia seguinte que tinha sucedido, o fruto negro, estraçalhado à bala, da caçada da noite anterior.  De quando soube que tinham arrancado os olhos a um "fubeiro" que trabalhara na loja do lado, por vingança ou já por coisa algum, saciada a raiva ancestral naquele ou em qualquer outro. 

A chegada do comboio

Naqueles anos de cinquenta, naquela cidade do planalto, local onde cruzaram pai e mãe e dali resultei eu, havia o ritual do depois de jantar. 
Dava-se uma volta pelo jardim, em redondel, os casais aparelhados, com filhos uns havendo filhos, a jurarem amores que dariam filhos mesmo os outros que de amores se ficavam pelas palavras. 
Cumprimentavam-se ali mais uma vez, depois de se terem visto, porventura já, naquele dia de que a noite dava agora o cerimonial de um baile e seu salão. 
Num dos topos do jardim ficava o Palácio do Comércio, local do Tribunal, no outro o Banco de Angola. Num dos lados desse quadrado solene, símbolo de todo o poder, ei-lo, o Palácio do Governo, no outro a Estação do Caminho de Ferro. E era para aqui que tudo convergia.
O ritual social iniciava-se pelo passeio público, ritmado, o braço dado, a mão dada, o braço por cima do ombro, cada um conforme o seu estado, estatuto ou condição, e prolongava-se pelas paragens intermitentes dos pares em volteio, e os cumprimentos, normalmente de cabeça e andando, ou meia volta de conversa banal e no retorno ao passo, feitas as cortesias, o murmúrio da ratice sobre o vestido daquela, que era o mesmo, ou sobre os sapatos daquele, por engraxar.
Era então a hora de chegada do comboio vindo de Luanda, quatrocentos quilómetros de via férrea por entre pó barroso, que fazia com que se chegasse ao destino como índios peles-vermelhas. Saídos, em formigueiro, ei-los os exaustos viajantes e suas malas, e a aguardá-los os que os aguardavam por ter de ser e os que os esperavam por não terem mais que fazer. Havia a automotora, mas nos labirintos da minha memória perdeu-se-me a hora da chegada.
Com o desembarque, a ratice privada tinha então uma nova oportunidade pública de se exercer, mais ampla agora, mais variada, mais carregada de novidades. 
Eram os que tinham ido a Luanda, os que regressavam da Metrópole, os que arribavam pela primeira vez à colónia, funcionários, colonos, desconhecidos, amigos.
Naquela cidade, naquele jardim, naquelas noites eu era um miúdo passeado pela mão de seus pais. Às vezes deixavam-me cabriolar em liberdade, um pouco à frente, guardado à vista. O normal, porém, era nós sermos aquele círculo fechado, do mundo resguardados e ao resto indiferentes. 
Entre a austeridade severa de uma mãe e a bonomia animada de um pai, ia-me fazendo gente. Hoje que escrevo guardo ainda o cheiro desse jardim, os canteiros alinhados e o regresso a casa, ensonado de ter convivido com um mundo que viajava.
Dormia então um sono inocente feito de inconsciência. Subterrânea, a guerra, formava-se sobre a dor e os ressentimentos.

O imenso batuque

Tinha estudos garantidos e gratuitos no Colégio do meu padrinho. Ele era Advogado e eu era apenas o filho do solicitador. Aos olhos de um garoto, e nunca deixei de o ser até deixar o local onde nasci, estávamos em degraus diferentes da escadaria social. Ele e sua família, filhos incluídos, e todos nós em casa.
Talvez nada disso estivesse certo ou fosse sequer assim, mas era a minha verdade, sobretudo quando os visitava, respeitoso, e sobretudo quando o «Doutor Terêncio» me olhava com olhos bondosos e eu o sentia como se pai fosse, ou talvez mais. Teria tido orgulho em saber que eu daria em Advogado e soube-o pelo pior modo possível e sobretudo o mais doloroso. Jurei silêncio sobre isso, ao jurar a ética da profissão que tenho. 
Terêncio Africano Lopes da Silva. Falavam latim à mesa na casa de seus pais, em Cabo Verde ou era a lenda que me chegava quando ouvia falar, calado, os meus pais, sobre essa outra família. Educaram-me a não interromper os mais velhos. Não pelo que diziam, mas por serem mais velhos. Por isso calado ouvia e por isso consegui recordar. Só não fixa quem não ouve.
Hoje está morto. Confiscaram-lhe o escritório com a independência de Angola e com isso os Tratados de Direito Civil francês do Josserand, de que fazia gáudio, entre os compêndios de legislação colonial. Disse-me um dia que o empregado, dactilógrafo que matraqueava a máquina de escrever como quem tocasse marimbas, tal o sangue negro a saltar-lhe nas veias, o "Gafanhoto", dera, com aquela literatura jurídica gaulesa a ajudar, em defensor popular. 
Verdade ou ironia, era a voz saudosa da raiva de tudo ter perdido, incluindo a profissão. Não há pior tragédia para um advogado que a decadência da inutilidade.
Um dia, tentando explicar-me o que era ser advogado, lembrou as fomes em Cabo Verde, que o livro "Chiquinho" do Baltazar Lopes tão bem retrata. E como davam umas moedas a uns garotos para que, percutindo um pau numa lata, afugentassem com o ruído, as aves que roubavam o grão tão falho às bocas dos homens. E «meu filho», acrescentava, «é isto ser-se advogado, às vezes só temos uma lata e só temos um pau, e batemos muitas vezes, tantas vezes, imensas vezes com aquele pau naquela lata, para que pareçam muitas latas e muitos paus».
Um imenso batuque começou na minha vida desde então, a defesa do possível a tornar-me a vida impossível.

O miúdo que via passar os combóios

A minha rua, na cidade de Malanje onde nasci, chamava-se, como disse, Vasco da Gama. Não sei no que se terá transformado ou se existe sequer. Ao topo ficava o mercado, ao cabo, a linha do caminho-de-ferro. Era por ali que deambulava, quase sempre sem companhia, outras vezes com o Gégé, filho do Lucas funileiro, e com a Maria Luísa, hoje professora de matemática, talvez reformada, filha do Augusto Simão e da Nazaré dos Prazeres Simão, inquilinos da nossa família, que me queria oferecer uma bicicleta, sonho que a mão materna logo impediu, antevendo tombos e quedas e ossos partidos, e onde comprávamos sacas de milho para as galinhas que nos enchiam a capoeira.
Da "Quitanda", assim se chamava o mercado, lembro-me apenas do sino que tocava o meio-dia.
Já a linha do caminho-de-ferro é uma memória vincada que me fica. Passava ao fundo da minha rua, interrompia a minha rua, era o limite além da qual poucos brancos já viviam. Nascia o habitat indígena, o mundo ao qual eu, confinado à casa e à escola, era um estranho sem tê-lo sequer conhecido.
Se eu tivesse tido tempo, as questões ferroviárias, com todo o seu caudal de organização militarizada, de regulamentos e apitos, vigílias nocturnas e altas velocidades, ter-me-iam ocupado o espírito de qualquer forma. Como não sei, todo aquele concerto de homens e metais, de movimento e de espera, teria de ter encontrado em mim um modo qualquer de se expressar. Ficou como memória, como sentimento de nostalgia pelo que poderia ter sido.
Lembro-me das locomotivas a vapor, ronceiras e fumarentas no treca-treca de arrastarem atrás de si a centopeia de intermináveis composições; mas lembro-me, como poderia esquecer-me, a alegria das primeiras máquinas a diesel, brutais em altura e em majestade, as «Garrats» possantes, o rugir cavo dos seus motores, o silvo atroador do seu apito. Como me pareciam gigantes, imensas, montanhas metálicas roncando as entranhas da terra.
De Malange a Luanda eram quatrocentos quilómetros que levavam doze horas numa via reduzida impregnada de pó barroso. Parava-se na Canhoca para almoçar, sopa de feijão a escaldar.
A passagem dos comboios ao fundo da minha rua pressentia-os já, não pelo horário, que julgo nunca terei chegado a saber, mas sim pelo progressivo aproximar-se do "pouca terra" entrecortado com «úaaaa úaaa» com que a máquina anunciava a sua chegada.
Lembro-me do guarda da linha.
Lembro-me da sua fardeta manhosa e esburacada, dólmen de autoridade ferroviária, a bandeira vermelha na mão.
De carapinha branca, o rito digno dos velhos negros, o guarda da linha ocupava o seu imenso tempo livre a fabricar sapatos que recortava de velhos pneus. Antes de eu ter sabido o que eram sapatilhas de ténis, aqueles foram as primeiras que vi fazer pelo homem que mandava passar os comboios.

O ígneo sinal

Nasci, segundo ouvi contar pelas duas e vinte da madrugada do dia 25 de Março de 1949.
Nessa noite teria havido uma forte trovoada e um raio atingira em cheio, rachando-a ao meio, uma árvore em frente à nossa casa.
Lembro-me da árvore, dividida em dois corpos, a copa cindida roçando o chão, o tronco carcomido, como as pernas soerguidas de um soldado caído.
Árvore assombrada, tocada por uma faísca fatal, aquela amalgamava vegetal e mineral, petrificada, estava morta e embalsamada e plantada em frente à minha infância.
Se acreditasse em premonições, aquele espectáculo ígneo de uma árvore fulminada por um relâmpago, ter-me-ia causado o arrepio de uma antevisão do futuro.
Mas, afinal, era apenas a expressão de um mau momento na natureza.
Por detrás dela, a árvore morta, cujo nome, eu pouco entendido em árvores, aliás não sei, uma outra, majestosa em altura, se plantara, uma palmeira.
Ao fim da tarde, bandos de corvos, concentravam-se nela, para a noite, onde faziam abrigo. Quando vi o filme "Os pássaros" do Alfred Hitchkok, foi como se já o tivesse visto no Cine Paraíso do meu passado.
Aquele ritual diário, ao pôr de sol, de dezenas de aves agitando as suas asas negras e, como cachos, aninhando-se nos ramos dentados da palmeira, ensinou-me, pelo olhar de uma criança, o que era uma vida a cumprir-se, o que era a força arrebatadora do instinto vital feito apelo, o que era, sobretudo, a desolação das almas, cantada no grasnar aflito daqueles rapinantes, projectados majestosamente ao crepúsculo.
Se eu tivesse entendido então que os nossos sonhos, as nossas ambições, os devaneios, não resistem à migração eterna como a daqueles corvos, a que nossa condição também nos condena, teria evitado algumas das minhas errâncias voluntariosas e ter-me-ia deixado seguir no ciclo vital da rotina e regressado, ao fim de cada dia, como todos os do meu ninho familiar, à minha palmeira.
Assim, nasci por coincidência, num mau momento, e saído um dia da minha palmeira na Rua Vasco da Gama, em Malanje, perdi-me do resto do bando e ao poente, já não regressei. Em 1961 com o início da guerra em Angola acabava o mundo em que eu vivera. Um mundo de isolamento e contrição.

Uma semana depois

Uma semana sem vir aqui. Como é possível?. É simples basta não ter tempo sequer para pensar. Volto já. Prometo. E reponho o atraso.

Fim de semana

* Reforma do processo civil com assinatura das Finanças, pois claro... [aqui, no Patologia Social]

* A propósito do surgir de um blog [aqui, na Patologia Social]

* Tento não fazer figuras tristes. Por mais que certos casos apeteçam e se prestem à demagogia de ficar bem na fotografia do comentário populista... [aqui, regressado ao Patologia Social]

* Há blogs que exigem dedicação, porque são a exposição de um trabalho permanente [aqui em O Mundo das Sombras].