O mancebo

Moro hoje em frente ao fatídico local. Era ali o DRM, o Distrito de Recrutamento e Mobilização, onde se ia saber do recenseamento e pedir o adiamento da incorporação e essas coisas que eram necessárias para se estar em dia com os deveres castrenses. O interlocutor que me cabia era o «sargento Batalha», o rosto visível de uma realidade cada vez mais próxima, o Exército Português.
Eu tinha sido apurado «para todo e qualquer serviço militar», e comigo aqueles a quem faltava um dedo para accionarem o gatilho, que disparassem com os dedos que sobejassem, e os que tinham pé chato mas não tinham "cunha" e tudo e as botas, que já se rapava no fundo para encontrar «carne para canhão».
A "inspecção" essa foi num quartel pelas zona de Oeiras. Não sei porque ironia, já despidos, confinaram-nos numa sala de aulas, onde carteiras escolares, de tampo inclinado, davam um ar de infantilidade ao ambiente, que a ardósia e os mapas de geografia e os atlas do corpo humano, enforcados na parede, completavam. 
Imagina-se que meia hora depois, aquela horda de homens nus, estava tão infantil quanto o local  circundante. Entre as brejeirices que não tardaram a fazer-se ouvir e os efeitos gerados por um que se lembrara de levar uma revista adequada a fazer entrar em acção a mecânica dos fluídos masculinos e suas consequências elevatórias, houve de tudo.
Na hora da chamada, um a um, já o respeito mudo deslaçara, cumpriu-se, em fila indiana, o bando em pelota, o ritual do acto, com a sua liturgia e eis a minha vez de ir à «craveira», um metro e setenta e dois, «balança», quarenta e oito quilos «há-de engordar!», tudo fechado em segundos pelo «pum pum-pum» de duas carimbadelas num impresso, e está feito que o coronel médico nem se dignava levantar os olhos, «apurado!».
Foi o e assim sucessivamente até ter aparecido o mais virilmente afectado pela provocante revista, que andara, entretanto de mão em mão, com as rotundidades femininas fotografadas em grande plano, que a coisa ia então dando para o torno «que se andam para aqui a brincar, vão ver o que é bom para a tosse, que isto não é nenhum casa de putas, ou o que é pensam?» e ninguém pensava nada. Atrapalhado, o pobre rapaz, sem saber como aquietar aquele inesperado prolongamento de si, sumiu-se entre risinhos e piadas já de caserna para os fundos do anonimato, à procura das calças e dos sapatos naquele amontoado de roupa em que no final um tinha dois sapatos do pé direito e as cuecas de outro nunca mais apareceram.
Passada a prova em que todos venciam, ao regressar a casa, nesse dia, a Amadora tinha, sem o saber, mais um mancebo, o 153053/70, soldadinho  de chumbo, que aprenderia mais tarde a «ordem unida» e com ela o «firme sentido ombro arma apresentar arma, descansar!», tudo de modo declamado, sincopadas as palavras, prolongados os seus finais, voz de comando, ao toque de requinta e ao som de tambor, «pronto, meu Capitão», «Vossa Senhoria dá licença?». «Destroçar!»
Ao olhar para a fotografia, os óculos sem aro, o ar de betinho bem compostinho, que nem sei onde o inventei, ganho a certeza que a guerra estava perdida.