O medíocre medo

Um dia chegaria a guerra. Primeiro sob a forma de belgas espavoridos, que fugiam do Congo, os seus carros apinhados com tudo quanto podiam trazer, desorientados, a caminho de salvarem a pele. Não sei porque passaram por Malanje. Talvez, suponho hoje, por causa da companhia belga do algodão, a Cotonang, onde o meu avô trabalhava.
Sei que foi a primeira vez eu, um miúdo com onze anos, habituado à vivência pacífica da minha rua, que era o único mundo de todos os mundos e mais a escola, senti o que era o "poder branco" a escaqueirar-se como uma jarra de porcelana que das mãos se soltasse. E o espanto de todos pela fragilidade de um sistema que eu nunca tinha percebido que era colonial, porque na escola se estudavam os afluentes do rio Tejo, as linhas ferroviárias do Douro, e coisas como Dadrá e Ngar Aveli, o Afonso de Albuquerque, os Bijagós e o rio Rovuma que nascia no Largo do Niassa.
Mas ei-los, os que até ali dominavam e mandavam sobre o indigenato e seu trabalho, a escaparam-se como coelhos, assustadiços aos primeiros tiros.
Em casa supunha-se, porém, que aquilo não era connosco. Porque os belgas eram uns negreiros e nós tínhamos mestiçado. Porque aquela era a nossa terra, e o Congo belga tinha sido uma coutada do Rei Leopoldo.
Pela hora do jantar ouvia-se, no entanto, Rádio Brazzaville, o local do sinal marcado com um risquinho a tinta no quadrante do rádio a válvulas, em onda curta e um ambiente pesado, sombrio, cerrava a cara dos mais velhos.
Um dia fomos convocados para ir para o Campo de Aviação, um pedaço de terra batida, sem asfalto, mais um casinhoto de fazia de hangar de uma pequena avioneta ocasional. Colocados em oblíquo à pista os automóveis, os seus faróis iluminavam-na para que, naquele inquieto anoitecer, ele pudesse aterrar entre o troar medonho dos seus motores a hélice e a nuvem de pó quando as rodas tocaram o chão. Tubular, ovóide, estranho pássaro, o avião, um Nord Atlas, murmurava-se, vinha carregado de armamento para o Quartel.
Foi então o tempo da revolta da Baixa do Cassanje o morticínio a que se seguiria o morticínio. A chegada dos Caçadores Especiais. 
Ainda hoje tenho estampado no interior da alma o medo, o horrível e medíocre medo. Quando ficava sozinho em casa. Quando, caindo sobre os telhados de zinco, as mangas, tudo pareciam estrondos de explosões. Dos faróis dos jeeps à noite. Do ladrar de uma metralhadora pesada no quartel. Do que se dizia no dia seguinte que tinha sucedido, o fruto negro, estraçalhado à bala, da caçada da noite anterior.  De quando soube que tinham arrancado os olhos a um "fubeiro" que trabalhara na loja do lado, por vingança ou já por coisa algum, saciada a raiva ancestral naquele ou em qualquer outro.