Um Soldado Desconhecido


Que guerra era aquela para os meus doze anos quando ela começou? Que motivos tinha eu para a compreender, razões para justificar como é que, de repente, o ódio andava à solta pelas ruas? 
Eu, menino branco, filho de e neto de colonos, para quem África já era a sua terra, eu com dois irmãos mulatos, nascidos de meu pai, que praticamente não conheci e face a quem tenho hoje como que um pudor vergonhoso de me encontrar por não saber sequer o que lhes dizer? Eu para quem a Angola dos meninos brancos, dos "riscas-risca" e das "rebitas" e das "caçadas", não era a minha terra, nem a dos meninos negros porque sentia que não era negro sem imaginar sequer o que era ser-se europeu. Eu, para quem a Metrópole foi um sabor adquirido, mas que por decreto governamental era considerado um "branco de segunda"?
Da guerra que nos cercava, com o seu cortejo de horrores, ficou apenas o medo nocturno, o acordar a meio do sono espavorido e ir abraçar-me a uma espingarda 22 Long que o meu pai comprara, mais seiscentas balas e uma pistola, armando-se como tantos brancos se armaram, defendendo-se uns de uma matança, imaginando outros uma matança. 
O medo ao ligar para o cinema, a partir do n.º 95 - que era o do telefone da nossa casa - e pedir à dona Manuela - que era a menina da bilheteira - que chamasse os meus pais, porque já não aguentava mais estar sozinho em casa, escondido, espavorido por tudo o que via relatado nas conversas dos mais velhos, num pesadelo sonâmbulo de que me entrasse pela casa adentro, de catana em riste, de "canhangulo" apontado, seja do que fosse de primitivo mas mortífero alguém e me escolhesse a mim por acaso para sacrifício pelos seus antepassados.
E como tudo se debatia numa convulsão contraditória na minha cabeça.
Mas não era aquela a terra da convivência pacífica do meu pai e o seu escritório de solicitador, mais a Emíila, escriturária, negra, negríssima, que ainda hoje me chama «o nosso filho» quando de mim fala à minha mãe, assim ela a pudesse já ouvir. Do Norberto, mulato, rapaz das voltas, que me deixava andar de bicicleta às escondidas do meu pai? Do David, o carpinteiro que fazia todos os biscates de que uma casa precisava? Do Leonel, meu meio-irmão que andou comigo ao colo, casado com a sua Saudade?
Era, mas era a mesma Angola em que no Cinema do Senhor Pratas ainda houve um dístico que anunciava «é proibida a entrada a indígenas» e por isso o Director de Fazenda viu a sua entrada recusada por um porteiro zeloso, e, orgulhoso, se recusou agora ele a entrar, mau grado as desculpas do próprio Pratas, que «indígenas» eram os outros «os matumbos» os «não assimilados», «o senhor doutor desculpe». 
A mesma Angola onde eu ouvia os gritos lancinantes dos negros que fugiam ao "contrato" - pelo qual eram arrebanhados nas suas terras por negreiros e levados para trabalharem com prazo fixo obrigatório para longe dos seus e quantos criados domésticos tivemos desses - e em quem os "cipaios", polícias negros ao serviço submisso da nossa Administração Colonial, arreavam palmatoadas até as mãos lhes rebentarem de sangue como castigo pela ousadia da fuga.
A mesma Angola de tanta companhia majestática, da Diamang ali ao lado, e tanto branco pobre, que chegavam à busca de melhor vida, fato de cotim, mala de papelão, vindos com "carta de chamada" na terceira classe do "Niassa", do "Uíge", a mesma Angola onde o meu avô, serralheiro mecânico, dizia que para ver um branco nos 400 quilómetros em redor tinha de se olhar ao espelho e eu pensava por isso que deveríamos ser boas pessoas para todos eles quando não cortavam-nos as goelas e jogavam-nos no mato, à mercê da bicharada. 
A mesma, a mesmíssima Angola, em que o "soba" nativo castigava quem lhe roubava a mulher atando-o e à adúltera, irmãos de raça, num buraco para que fossem comidos vivos, dias a fio, por hordas de quissonde, essa formiga carnívora cuja ferroada era um ganir de dor e no fim ficavam só os ossos.
Sei que quando a minha vez chegou, já na Metrópole, já licenciado em Direito, estágio feito de advocacia, de ir para a tropa, por ter beneficiado de uma «espera» para que ganhasse tal habilitação, e me coube, não aquilo por que me esperaram, mas, mau grado os meus ridículos 48 quilos, Armas Pesadas de Infantaria  - «onde se mata sem saber quem, e se é morto sem saber por quem», no dizer alarve do nosso instrutor - e já com prometido embarque para a Guiné, decidi: «não vou».
E, no entanto, não tinha para onde ir. Não tinha partido, nem grupo, nem pai já, nem dinheiro, era um pobre diabo que tinha passado meia faculdade mal alimentado e a comer miséria disfarçada, a meias com a mãe, porque Angola nos fora madrasta e ficou lá tudo sem descolonização, antes da descolonização, dois ermos sozinhos e aos tombos da sorte. 
Não sabia, na minha cobardia de desertor, como se chegava onde quer que fosse, mas atravessaria a fronteira a pé, corajosamente, nem que fosse para a terra de sítio nenhum.
Achava que Salazar mentia quando propalava que defendíamos Angola contra os imperialismos e a História mostrou que quem estava enganado era eu. Achava que os soldados iam matar negros que já estavam mortos na sua dignidade humana por um regime que os libertou da escravatura tornando-os serviçais e, afinal, olho hoje para o regime de Luanda e a História insulta-me nas minhas certezas.
Para o Governo de Lisboa, seria negar-se a si próprio não ter defendido as colónias. Para os soldados que em nome de um dever, de uma ambição ou de uma inércia, deram a vida por essa defesa, a Pátria deve-lhes um silêncio compungido e pesaroso. Ante uma cruz funerária de um soldado morto, não há política que se discuta, ajoelhamos pelos nossos e pelos deles.
Um dia insultaram o António Lobo Antunes por escrever sobre uma guerra que não viveu. Um soldado não conta a sua história. Cada um deles, os que sobreviveram ou escaparam à linha da frente, é, mesmo sem o saber, um Soldado Desconhecido.