Gogomobile

A pequena criatura sou eu. A sombra que sobre o automóvel se projecta, a do meu pai, orgulhoso do seu menino, a máquina fotográfica, em baquelite, de que só me recordo as minúsculas fotografias que tirava. A viatura um Gogomobile, que só mais tarde viria a saber ser da fábrica BMW. Recordo sim que tinha as mudanças eléctricas no tabelier.
A matrícula começava por "A", por ser emitida em Angola.
Fora uma oferta do meu pai a minha mãe. Naquele tempo a vida permitia-lhe isso. Uns anos depois o tecto cair-nos-ia em cima. Ficou desse mundo a pálida fotografia. E memórias tristes por causa desse oferta. Não interessam para o que aqui escrevo. 
A verdade de uma vida é o que dela importa, mescla de memória e de esquecimento. Talvez um dia se escreva da História do Mundo Omitido, como a do meu pequeno mundo, a deste pequeno carro.

Os "assimilados"

Chegou a Malanje, tal como nesta foto se mostra quando chegou a Luanda. Era ministro do Ultramar de Oliveira Salazar. Este, sabê-lo-ia mais tarde quando os estudos me permitiram entender o que nem pressentia, tinha-o ido buscar para o Governo do Estado Novo aos sectores oposicionistas. 
A sua viagem a Angola traduzia um esforço de autonomia controlada, o fim do "Estatuto dos Indígenas", dos "assimilados", dos "brancos de segunda". Adriano Moreira era o homem que servia.
As colónias transformavam-se apressadamente em "províncias ultramarinas", à solução dos massacres, como os da Baixa de Cassange, sucedia uma política "psico-social". Tarde demais.
Na altura eu nada entendia no que dizia respeito a este repintar das fachadas do sistema. Lembro-me sim quando o jovem governante, num igual aceno, extasiado ante a espontânea manifestação local, não se apercebia, ou tentava não se aperceber, de que nas filas de trás do ministerial cortejo seguiam camiões apinhados de nativos, num deles a berrarem «Benfica! Benfica», como se enganados nos vivas, e em outra um "cipaio" empunhando as senhas do almoço à borla que restabeleceria a energia gasta em tanta grita! 

Ecos da Via Sacra

Já se percebeu que esta narrativa não segue nenhuma ordem cronológica, mas a do fluir dos sentimentos. Não é uma biografia, mas um passeio pelo interior de uma vida. 
Com o início da guerra, em 1961, percebo hoje em que medida a minha família se dividiu em duas partes. A minha família eram em casa o pai e a mãe. Ele nascera em 1898, fora para África com vinte e poucos anos, como quem se exila voluntariamente, primeiro para São Tomé, onde o seu pai falecera, depois para Cabinda, enfim para Malanje, onde nasci. África era já a sua terra de adopção. Ela, nascida em 1922, fora para Angola para acompanhar os pais, forçada, e sentia-o como um degredo. O regresso à Metrópole foi uma libertação, sem imaginar que viria a ser um aprisionamento.
Viemos morar para Viseu. Lugar para mim desconhecido, terra natal de meu pai, sobrinho neto do Cónego Barreiros, que lhe dera, pois que órfão, estudos gratuitos no Seminário Colégio da Via Sacra, que fundara em 1908. Ali meu pai conheceu e foi condiscípulo de António de Oliveira Salazar. Contou-me quantas vezes o vira, depois de um dia de trabalho como prefeito do Colégio, a retirar-se, para estudar, tirando cuidadosamente as meias e arregaçando as calças, para, em pleno Inverno, meter os pés numa bacia de água gelada e assim não adormecer. Alguém me trouxe há algo tempo um recorte do jornal "Ecos da Via Sacra" em que a escola agradecia «ao senhor Salazar» o que «tem feito pelos nossos rapazes».
Ante o que ouvi em casa e ao ler o jornal uma pessoa entende como tudo o que é nasce afinal do nada.
Ao passar há algum tempo por Fundo de Vila, em Penalva do Castelo (Castendo), concelho de Mangualde, e ao ver tantas ruas com o nome de Barreiros, senti como que a humildade de ser apenas a actualidade temporária de um nome que me antecedeu e que lego aos que me sucederem para que esse nada possa ser no fim tudo quanto há.
José Barreiros Pina do Amaral, filho de José de Pina e de Maria do Amaral. Faleceu tinha eu vinte anos, tinha-me morrido, porém, uns anos antes, porque a vida não é o tempo da existência mas a da essência do que se vive.

Vidas desfolhadas, livros desfeitos

Não sei que livros havia em minha casa, mas havia muitos livros. Quando viajámos para a Metrópole, a minha mãe e eu, porque a guerra começara, e deixámos o meu pai para que, arrumada a vida, se juntasse a nós, e juntou-se sim para morrer, sei que venderem imensos desses livros, a esmo, ao melhor preço, a peso. Mesmo assim alguns vieram, restos amarelecidos de uma vida desfolhada, desirmanados, sem nexo. Foram-se as "Memórias de Trabalhos da Minha Vida" do general Norton de Matos, que depois vi em alfarrabistas a preço de ouro, a Pearl Buck, o Somerseth Maugham, o Pitigrili, tantos Joaquim Paço d'Arcos, tantos portugueses com quem me reencontraria na "Selecta Literária" do 6º e 7º ano do Liceu, os estudos etnográfico do Redinha. Não sei porque não trouxemos esses, pois que se encaixotaram os do Armando Ferreira e do Olavo d'Eça Leal, "A Tragédia Sexual de Leon Tolstoi", e "As riquezas dos Jesuítas". 
Talvez tenha sido aí que começou esta parte da minha biografia que são bibliotecas abandonadas deixadas para trás de vidas desfeitas.
Hoje reencontro-me com o local onde me fizeram nascer em velhas livrarias e descubro que havia em Malanje quem escrevesse, mas eu era demasiado miúdo para me aperceber, como o Mena Abrantes no teatro, o Cerveira Baptista na poesia. Como se nunca tivessem existido, eles e eu.