Os despojos do dia

Não interessa que esta narrativa não respeite a cronologia, porque as nossas memórias são turbilhão de sentimentos sem outra ordem que não seja a do vinco que nos deixou na alma.
Para fazer o primeiro ano da Faculdade de Direito vim para Lisboa. Estava previsto que estudaria em Coimbra por vivermos em Viseu, mas a vida encarregou-se de nos surpreender.
Cheguei sozinho à "capital do Império". Ainda havia do Império a sonolência, ido o sonho, não chegada ainda a saudade após o pesadelo.
Hospedei-me na Pensão Universal, ali na Avenida Duque de Loulé, logo após a ponte que passa sobre a Rua de Santa Marta. Ali, porque tinha instruções para ali ficar, porque o meu Pai tinha ali ficado uma vez.
Só que não havia quarto para mim, estava tudo cheio. Improvisaram-me então dormida na sala de estar. Só podia deitar-me depois de já não haver hóspedes que ali quisessem ficar a olhar para a televisão. Nem sei se telefonei para Angola, onde a minha Mãe recolhia o que tinha ficado das nossas coisas e do que já só era o meu Pai, para dar conta desta circunstância, afinal uma pálida incomodidade na angústia financeira em que se tinha tornado a nossa vida.
Lembro que comprei, sim, o Manual de Direito Constitucional do professor Marcello Caetano e mais os fascículos da História do Direito Português, da História do Direito Romano e da Introdução ao Estudo do Direito. E um lápis daqueles que eram simultâneamente vermelho e azul.
E comecei a ler e a sublinhar, a vaga náusea de aquilo não ter a ver comigo. Tal como dormia depois de todos se terem ido deitar, a vida surgia-me como só passível de ser vida depois de todos a terem vivido, disponíveis, enfim os sobejos.Tinha dezassete anos numa Pátria estrangeira.

A mão estendida

Se olhar em redor para as memórias que ficaram desse tempo adolescente em Viseu recordo como de conhecimento pessoal três nomes: o Eurico Dias, o Luís Miranda Rocha e a Isabel Santos. Tudo o mais esvaiu-se. 
Sim, sei que existiam e que nos falávamos e talvez nos julgássemos amigos, tantos outros, no Colégio de Santo Agostinho, no Liceu Nacional. Mas aquela intimidade da presença, das horas usadas em conversa, daquele nada vagueante parecer o tudo que haveria para viver e sempre aquela ânsia que as paredes do nosso confinamento se alargassem a perseguir-nos, nunca se lhes estendeu a todos esses que se me lerem me julgarão ingrato e me condenarão como arrogante. Mas saibam que me defendo com a confissão da humilhação.
Se tentar perscrutar no tempo onde iniciou esse tempo de reclusão talvez o situe mais longe, na Malanje onde vivi até aos doze anos e onde deixei apenas dois nomes como rasto de presença.
Quantos amigos ou conhecidos entraram na minha casa? Os dedos de uma mão chegam para contar. Quantas vezes entrei eu na casa dessas pessoas? Talvez os dedos de ambas as mãos sobejem para o dizer.
Do Eurico Dias lembro-me dos longos passeios, a esmo, pelas ruas e vielas, atravessando de par em par a cidade, espraiando-nos até, como num jardim, pelo cemitério, indiferentes aos mortos, ele taciturno, eu a fazer as despesas da conversa. 
Da Isabel Santos, os bailes domésticos em que, sob a vigilância dos pais, um grupo precário de adolescentes a borbulhar, ia afluindo, cada um trazendo a sua parte para a merenda, entre croquetes e bebidas gaseificadas, que o mais um gira-discos fazia, cumprindo a sua função, cada um em busca do seu possível par, ansiando o dançar agarrados o suficiente e suficientemente separados, a mão a travar o ímpeto do corpo, e depois o regresso a casa, a horas certas, os sentimentos confundidos pelas sensações.
Lembro, enfim, o Luís de Miranda Rocha. Mais velho que nós. Pela sua mão aprendi a ler, soube o que era a cultura. Seguia-o até junto do edifício da Biblioteca, onde parava, vinda de Lisboa, a camioneta da carreira, a que trazia os jornais de Lisboa. Com as poucas moedas que me tilintavam no bolso, porque nunca soube o que era uma mesada ou uma semanada, ou regularidades que tais, atrevia-me a comprar o Diário de Lisboa, uma vez por outra o República, aquele para ler nas entrelinhas, este por militância na sua breve prosa.
Um dia soube que tinha morrido. Prestei-lhe aqui a possível expressão do que lhe devo, tanto quanto as palavras o conseguem. Como no seu poema, «as palavras não existem para além da nossa voz». A sua companhia ensinou-me a estar só. Escreveu um comovido livro de poemas chamado O Corpo e o Muro. Dedicou-o a «M», um segredo do seu coração.
Lembro. Estendo a mão ao que poderia ter sido e na presença do vazio, lanço-a a tudo quanto puder ser. Viverei a vida por viver, vivendo-a!