Um dia de Sol


Comemoraram nesse dia um ano de casados e no seu ventre era já uma breve existência a minha pessoa. Hoje assinalámos os seus noventa anos. Da capacidade de comunicar resta-lhe já só o apertar forte de uma hesitante mão, o olhar de aflição de quem nos quereria dizer que nunca foi dito. 
Foi uma vida silenciada a martírio a sua. Lentamente a agrura transmutou-se em ódio, a dignidade em solidão. Depois todos os outros sentimentos foram secando. Viveu sozinha os últimos quarenta e três anos, encerrando-se no interior de si.
Ficou-lhe o orgulho no seu menino. Dizia-o a quem a ouvia, mas no mais desaprendeu o modo de o exprimir. 
De herança ficará um dia o culto do dever, a honra indeclinável. 
Estivemos hoje todos os que ficaram no seu mundo cada vez mais estreito.A Natureza trouxe-nos o Sol, fonte de tudo quando vive.

A terceira suplementar


O meu mundo de menino branco nascido em África tinha acabado quase sem começar. E a infância ilusória de filho de pais endinheirados. Agora tinha dezassete anos. Regressava de uma inesperada viagem a Angola, onde fui encontrar os escombros do que tinha sido uma vida promissora: agora a doença, as dívidas, o sem esperança haviam liquidado o que sobejava.
De lá saíra quando começaram em 1961 os massacres na Baixa de Cassanje, os nervos então desfeitos pelo medo e pelas insónias que a química médica não resolveu.
Por esmola arranjaram-me para poder embarcar para a Metrópole uma passagem no navio "Uíge", tão atulhado já de passageiros, que me albergaram num catre da "terceira suplementar", um caserna por cima dos porões. 
Voltava sozinho, em Setembro de 1966, porque a Faculdade ia abrir dentro de um mês e eu não conhecia ninguém em Lisboa. 
Antes de ter partido, nesse regresso brevíssimo às ruínas do que fora a minha infância, tínhamos vivido em Viseu, zona da minha paternidade. 
Agora tudo me era alheio. Faltava-me enfim tudo. Até um sorriso no rosto. 
O ensimesmamento começou aí, fruto daquela dignidade dos que não têm, honra dos que não querem perder o que são pelo que gostariam de ter sido.
Sou aquela figura do lado esquerdo da fotografia. Continuo a ser aquela figura do lado esquerdo da fotografia, mesmo quando o contentamento me anima o coração.