O Homem e a sua origem


E eis que me foi dada a oportunidade de apresentar o livro sobre Malanje, na Casa do Alentejo.
Como em tantas outras vezes, ao início não sabia o que dizer. Ademais, saíra de Malanje com o advento da guerra e a minha Mãe sempre se recusara a juntar-se aos que de Angola regressaram, os últimos na ponte aérea. Nisso pesou muito do seu ser solitário, que a foi enclausurando no isolamento, mas também as precárias condições económicas em que nos encontrámos, estava eu a entrar para a Universidade. Foi então o orgulho de que não soubessem que estávamos agora "na mó de baixo" que imperou, tornando-nos "bichos do mato"
Ao chegar em 1962 ao que então ainda era «a Metrópole» eu era o menino filho do «tio Zé africanista», presunção de riqueza acumulada que na altura não existia mas que no pequeno meio que era Viseu, onde aguardávamos a chegada de meu Pai, ainda era disseminada. Depois, com o regresso efectivo do dito Zé já não havia família sequer a que nos ligássemos. 
Comemos então, num modesto apartamento na Venda Nova, aos confins da Amadora, "o pão que o Diabo amassou".
Malanje foi para mim, por isso, durante largos anos, um hiato na presença, uma lembrança que não se quer ter, apesar de estarem ali enterrados, ao alto do Capopa, os meus avós maternos, apesar de ter ali ficado o coração do meu Pai.
Devo ao Lito Martin o conhecimento de um blog dedicado aos malanjinos. Foi assim que se formou o fio invisível dos afectos que liga um Homem à Terra que lhe deu o ser.
Neste espaço venho deixando, aos  poucos, parte dessa tímida memória. Naquela tarde, ante o livro dos meus conterrâneos, deixei falar o coração. Não tenho por isso palavras pelas quais consiga dizer o que disse.

A essência de então


Vou hoje, pelo meio da tarde, aqui no Porto, à apresentação de um livro sobre o local onde nasci. E as memórias emergiram, vindas do lugar íntimo e secreto onde se escondem, como a protegerem-se do futuro que nos foi dado viver ou a pouparem-nos ao passado de que são vestígios, no caso a albergarem o que foi a infância na terra onde ficaram, sepultados, um pouco acima do Rio Capopa, os meus avós maternos.
E lembrei-me das viagens que se faziam de automotora, deslizante no seu zumbir sacracoteante, os seus bancos de napa, o interior fresco, desde essa Malanje primordial até à para mim mítica Luanda e seu regresso. E as horas que tudo isso significava, e o progresso que já era ante o ronceiro comboio, poeirento, para mim, prodígio de ferragem ferroviária. E a paragem a meio, na estação da Canhoca, onde nos esperava, como almoço, uma sopa de feijão, servida a ferver a quase não dar tempo para o prato de substância que sossegava a fome para o resto do percurso. 
Encontrei hoje uma fotografia, bem posterior aos anos em viajava. Tudo me sucedeu antes dos anos sessenta. Depois foi o início da guerra, a revolta da Baixa de Cassanje, a chegada das primeiras tropas, os Caçadores Especiais, o fim de um mundo, a perda de todas as referências.
Vou hoje, ao meio da tarde, aqui no Porto, à procura do que fui, a lembrança vaga, incerta, receosa mesmo, do que foi a essência de então, o regresso ao caminho de ferro de uma vida.

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Fonte da foto: aqui

José António também


Uma bala da PIDE matou-o. Éramos colegas de carteira na Faculdade de Direito, porque nos arrumavam alfabeticamente e ele era José António Ribeiro dos Santos e eu José António Rebelo da Silva Barreiros.
Na Cantina Velha da Cidade Universitária conversávamos tardes inteiras. E vínhamos por vezes a pé até a Entrecapos e dali ao Saldanha e dali ao Marquês e porque não já agora até ao Rossio e mais um estirão até Santos, onde ele morava.
Falávamos de tudo, incluindo as mil provas da inexistência de Deus, apesar de Santo Anselmo.
Talvez também da política, aquela que pulsava nas veias do "movimento associativo", esse mundo de comunicados tirados ao copiador a stencil e de cartazes em papel cenário e de cargas da Polícia de Choque, e arengas do regime de que estávamos a soldo de Pequim e Moscovo.
Lembrei-me dele hoje por causa desta fotografia que fui encontrar num dos meus desirmanados álbuns fotográficos, feitos de restos de memórias.
Foi tirada a ambos num dos nossos almoços de curso, num Convento Franciscano, que nos abriu as portas pela gentileza de um outro nosso Colega, o Padre Vítor Melícias, da mesma ordem religiosa.