A essência de então


Vou hoje, pelo meio da tarde, aqui no Porto, à apresentação de um livro sobre o local onde nasci. E as memórias emergiram, vindas do lugar íntimo e secreto onde se escondem, como a protegerem-se do futuro que nos foi dado viver ou a pouparem-nos ao passado de que são vestígios, no caso a albergarem o que foi a infância na terra onde ficaram, sepultados, um pouco acima do Rio Capopa, os meus avós maternos.
E lembrei-me das viagens que se faziam de automotora, deslizante no seu zumbir sacracoteante, os seus bancos de napa, o interior fresco, desde essa Malanje primordial até à para mim mítica Luanda e seu regresso. E as horas que tudo isso significava, e o progresso que já era ante o ronceiro comboio, poeirento, para mim, prodígio de ferragem ferroviária. E a paragem a meio, na estação da Canhoca, onde nos esperava, como almoço, uma sopa de feijão, servida a ferver a quase não dar tempo para o prato de substância que sossegava a fome para o resto do percurso. 
Encontrei hoje uma fotografia, bem posterior aos anos em viajava. Tudo me sucedeu antes dos anos sessenta. Depois foi o início da guerra, a revolta da Baixa de Cassanje, a chegada das primeiras tropas, os Caçadores Especiais, o fim de um mundo, a perda de todas as referências.
Vou hoje, ao meio da tarde, aqui no Porto, à procura do que fui, a lembrança vaga, incerta, receosa mesmo, do que foi a essência de então, o regresso ao caminho de ferro de uma vida.

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Fonte da foto: aqui