O fantasma do equívoco - 1ª parte



Enfrentando, enfim, o fantasma do equívoco, que me tem perseguido, como uma sombra. Desfazendo o nevoeiro que o mito acumula sobre a emaranhada floresta do que foi uma vida. Tentando entrelaçar-se no que seja verdade e a memória guarde não ficcionando. Mesmo desapontando, ainda que expondo-me à inferioridade neste mundo de heróis quotidianos.
Fui, como já o disse [aqui e aqui] um aluno medíocre. 
E não vale a pena albergar-me, no que à Universidade respeita, com o facto das precárias condições financeiras e o turbilhão de ressentimentos em que, na minha casa, passámos a viver, condicionando-me os meios, castigando-me a alma. Já era assim pelo ensino liceal, seria assim na escola primária. 
Lembro-me que na tentativa de me ensinar números com muitos zeros a professora dos primeiros anos, cujo nome agora poupo, não achou melhor meio do que usar uma palmatória e fazê-lo no meu braço como forma de pela dor me obrigar a compreender. Foi assim, ainda em Malanje. Ao chegar a casa com um ostensivo hematoma roxo na zona do ombro, sinal da minha incapacidade intelectual feita castigo, o meu pai decidiu que não mais continuaria naquele Colégio onde tinha estudos gratuitos garantidos. Para lástima do Director, de quem eu era afilhado de Baptismo. E fui então confiado aos bons padres da Congregação do Espírito Santo, o Reitor Henrik Verdijk, o Padre Ferreira, o Padre Farinha, o Padre Sérgio, que tentaram, eles também em vão, tirar do meu acanhado cérebro algo que passasse para além dos doze valores.
Foi assim sempre. Na Faculdade de Direito, continuei a estrada do "suficiente", acrescente-se, porque uma revolta mansa contra tanto de abstruso e absurdo que era tido por normal método de ensino - e aí voltarei um dia - me afastou para outras paragens, entre a Associação de Estudantes, a vagabundagem solitária pura e simples e só nos dois últimos anos para o róseo morno da Faculdade  ali em frente onde havia em profusão uma realidade, rara então no Direito, à qual eu me tinha mantido até então indiferente: as meninas, de Letras.
Só uma Revolução, como a que sucedeu em Abril, introduzindo no País a ruptura das estruturas existentes abriria a porta do ensino universitário a alguém como eu, desprovido de credenciais e que retaliava não me reconhecendo sequer, pedestre da Cidade Universitária, na Faculdade oficial e sorumbática. 
Consciente então da insuficiência, envergonhado dela, porque, tendo encontrado enquanto estudante o território vasto do "não vou por aí", poderia, ao menos, ter sido outra coisa de substancial e organizado que não apenas a expressão do vago desinteresse, vivendo agora o período de convulsão social, política, de ideias, não fui daqueles que, "assistente especialmente contratado", investido assim na docência, ensinaram a vulgata da teoria geral do marxismo-leninismo a propósito de tudo quanto integrava o curriculum da Faculdade, nem - diga-se a verdade, contra o que diga um livro de encómio sobre a História daquela Casa, agora aparecido - tudo a isso se resumia naquele tempo: houve quem ensinasse Direito, eu ensinei Direito, Direito Penal primeiro e Direito Processual Penal depois. Estudei para o fazer. Estudei enfim, afincadamente. Levava comigo para as aulas os Boletins do Ministério da Justiça e sua jurisprudência, coisa nunca vista naquelas paredes como meio de ensino e traçava a giz no quadro um tosco mapa da Europa como uma história que se colocava em França, os enciclopedistas com os olhos postos da sonhada Inglaterra. E inventava equações e geometrias explicativas. E sobretudo entregava-me como se me examinassem àqueles a quem ensinava as primeiras letras.
Tentei suprir a impreparação, dediquei-me aos alunos, tentei tornar-lhes fácil a matéria, perceptível porque historicamente situada. Rompi com a ideia do Direito como uma silogística, algo saído das esferas da pura lógica, asséptica, realidade neutra, enfrentei-o no seu pulsar humano, social, fruto do precário a tentar impor o estável por sobre o contingente. E, no entanto, coerente mesmo nas contradições.
Talvez tivesse descoberto dotes de pedagogo, nasceu-me a felicidade de ensinar e ver tornarem-se bem melhores do que eu, em cada ano, entusiasmados, gerações de alunos e ali, na Universidade Clássica, e foram sete anos.
Foi, é, será, um dos mais gratificantes períodos da minha vida.
E, no entanto, talvez pelo modo de ser, aquela mescla de confinamento interior e de ânsia irrealizada de afectos, nunca acamaradei com alunos ou colegas, mantive sempre aquela fugidia distância, que poderia ser sinal de arrogância quando o era, afinal, timidez. Timidez que tudo na aparência desmentia, aquela timidez de quem se sente emigrante em País estranho.
Um dia, reestruturando a sua arquitectura, a Revolução ela própria a desacelerar o ímpeto que a aproximara da guerra civil, a Faculdade decidiu-se à triagem do seu corpo docente. Estaria aí, nessa circunstância, e sem que eu disso me apercebesse, a abertura da porta que me levaria à saída. Uma história que não foi o que parece ter sido e a ela irei. [continua]