A ânsia de Absoluto



Há um tempo em que o tempo começa a escassear e em que pela primeira vez se nota que o dia tem apenas vinte e quatro horas e que a vida individual não é eterna e se repara que a força anímica, mesmo quando renovada pela esperança, já não tem aquela resistência com que se enfrentaram tantos embates. 
Mesmo para os que tentam sobreviver renascendo, há o limite do tempo e o confinamento do espaço.
Depois há aquelas opções que se tomam e que nos vinculam a uma vida, as decisões que só aparentemente foram livres porque, por causa delas, se tolheu a liberdade futura.
Ter-se escolhido uma profissão desgastante, física, mental e afectivamente, que nos consome horas em que o repouso já se exigia ou que poderiam ser aplicadas à cultura ou à recreação. Ter-se alocado ao longo da vida recursos de energia e meios até financeiros a situações que desmoronaram, amputando parte do edifício que se poderia ter construído. Terem-se assumido encargos para com pessoas, projectos, ideias, princípios morais, que obrigam a dar e tornar a dar, mesmo quando sem retorno, ainda que sem gratidão, até face ao insucesso do resultado razoável.
A somar a isto há o desejo de se ser feliz, num mundo envenenado de tragédias, rancores, invejas, mesquinhez acumulada.
Pior de tudo isto é ter-se a consciência dos limites, saber quão erróneo e vil se foi neste mundo, incompleto, irrealizado, aquém do sonho e ter de edificar com o pouco que havia e o menos ainda que sobrou.
Olhei hoje para os blogs em que me tenho desdobrado e que constam da lateral deste mesmo que, aos poucos, se tornou biográfico, talvez imprudentemente pessoal, que não aproveito para a hagiografia do meu ser nem para a diabolização do mundo que me foi dado viver. Terei seguramente de dar conta que há muito ao abandono.
Juntei, um a um, os livros de Irene Lisboa dediquei-lhe um espaço, sem que me tenha sido possível voltar a ele, as obras meio-lidas, eu, afinal, mais um de tantos que a esqueceram, tristeza de indiferença ante uma escrita triste. O mesmo se passou, menos expressivamente talvez mas com a mesma natureza, com a obra de Maria Ondina Braga, de quem guardo inúmeras aparas do que julguei poder vir a ser um livro sobre a sua biografia interior e porventura uma edição das suas obras completas. Pior ainda o que ocorreu com Dalila Lello Pereira da Costa, relativamente a cuja esplendorosa escrita extática, correspondeu um começo de reflexão que por ali ficou. E quanta possibilidade havia de ter prosseguido com Clarice Lispector e sua irmã Elisa, sobre cuja obra extractei mais do que citações, frases, por me ter detido com um detalhe, que relaxei, sobre o pensamento subjacente e a sensibilidade que ali se espraia, mesmo desde os tempos em que eram quase ignoradas como voltaram a sê-lo, Elisa então na totalidade.
Dir-se-à que a culpa é da dispersão que mandaria a prudência não tivesse esse modo plural de ser. Só que não haveria outra hipótese de eu ser outro. Nem há. 
Mas que fazer quando me doem esses astros mortos no ciberespaço, evidências da minha incapacidade até de manter promessas de continuidade?
Há, depois, a vertente cívica, parte determinante do que ditou a minha sorte, desde os tempos de juventude e que me levou a erráticos e errados caminhos, por vezes ambíguas opções, das quais pelo menos trago o único consolo, o de nunca me ter apropriado com vantagem ou benefício que daí decorresse. Mantive-a, confinada, num espaço chamado "A Revolta das Palavras», para que fosse o jornal de parede dessa ânsia transformadora do mundo que encontrei. Tenho hoje a convicção de que nada se alterou nem seria possível alterar pela opinião dispersa e marginalizada que por ali exprimo, sem partido ou grupo a que pertença de que seja voz ou opinião.
Poderia continuar, porque há os locais onde fica o que é a minha investigação intervalar sobre aquele ramo da História Contemporânea que é a guerra secreta, sobre a qual escrevi e tenciono escrever livros; e há onde o que se tornou profissão, o jurídico, tenta encontrar pretexto e modo de reflexão e informação sistematizada. E mais onde ficam notas de leitura, apontamentos de alfarrábio, até mesmo o meu empenhamento com a "filosofia portuguesa" e com os temas esotéricos. 
Tudo incerto, irregular, ao sabor das circunstâncias e dos humores.
Continuo Advogado, que é a minha profissão e relativamente à qual estou sujeito a ritos cruéis, de deveres e prazos e exigências de responsabilidade. Tornei-me editor na ânsia de ter um projecto livre com que contribua para a cultura pela edição de livros, mesmo quando mecenas desta arte de empobrecer e possa dar voz, que mal tenho dado, à minha própria voz. 
Pelo meio ficou a escrita, a dispersa e a organizada, a prometida, a de há tanto tempo incompleta, livros adiados, artigos que poderiam ter sido publicados.
Há um tempo em que a vida exige mais tempo.
Para quem não se guia pela agulha de marear do lucro ou do aplauso, mas pelo instinto e pressentimento, espécie de adivinhação de um mundo possível, torna-se mais difícil porque não há uma forma de encontrar a equação certa entre o que que foi e o que resta.
Hoje, Domingo, dia de reflexão, pergunto se não devo retirar-me da vida pública, onde não faço falta, manter-me na profissão, que se me torna necessária, e optar pelas grandes opções que possa satisfazer sem vergonha de atraso ou má consciência de incompletude; ou se, afinal, não deverei ser, tal como a vida é, isso mesmo, a errância e o acaso, irrompendo ao sabor da ocasião, do momento, da ilusão mesmo que seja. 
A ânsia de Absoluto gera o Fim da História, aprendi ontem à noite, num jantar amigo. Contente-se, pois, o Homem, com o relativo, fragmentário, possível mesmo quando apenas provável. E faça disso contentamento, seu e dos seus.



O meu menino


Tenho andado por aqui a escrever a esmo. Não são memórias porque tenho pudor e teria de omitir nem auto-biografia pois tenho o sentido do ridículo. São momentos, dispersos, desordenados no tempo, meus e dos meus. Aqui e além desenterro uma recordação, um velho papel, uma fotografia. E a propósito sigo em frente, contando o que me lembro e o que se me suscita. São lembranças e ficções que é assim que uma vida surge aos olhos dos outros mesmo quando contada pelo próprio.
Em muitas casas havia o livro de Samuel Maia, "O Meu Menino", «recomendado pelo Ministério da Educação Nacional» para os Cursos de Puericultura..
Pois ali estou eu, anotado nas folhas finais, com a cuidada caligrafia de meu pai. Nasci com 53 centímetros, pesando três quilos meio. No fim do primeiro mês já «distinguia os sons», reconhecia «o doce e o amargo». «Chora com lágrimas», sublinhou. Passei a dar gargalhadas ao quarto mês. Nessa altura já notavam: «Prefere estar sentado». 
Olhando hoje, com ternura de memória visitada, para tudo isto creio que está ali muito do que há de essencial na vida. Até quando, ao sexto mês, aquele meu pequeno eu «não engatinha».